Voltaire (1694-1778), filósofo
iluminista francês, escreveu sobre os médicos de seu tempo:
Médicos colocam remédios sobre os quais pouco sabem,
em nossos corpos sobre os quais sabem menos ainda,
para curar doenças sobre as quais nada sabem.
O debate em torno da
cloroquina e outros medicamentos para combate à infecção pelo coronavírus
parece tornar essa frase cáustica de Voltaire bem atual.
Por um lado, gestores da
saúde, movidos por razões políticas, tentaram substituir a caneta do médico por
um decreto, recomendando formalmente a prescrição da cloroquina para pacientes
com suspeita de Covid. Por outro, as sociedades médicas demonstraram tibieza ao
enfrentar interferência de terceiros, ainda que seja o governo, na relação
médico- paciente. Some-se a isso o fato de que muitos médicos, por ignorância
ou temor, engrossaram a fila daqueles que perderam a confiança na capacidade da
ciência de nos tirar desse imbróglio.
Para além da politização do
assunto, se nos atermos aos fatos comprovados, o dilema da cloroquina
desaparece.
Na medicina contemporânea, a
frase de Voltaire tem de ser atualizada. Afinal, sabe-se muito sobre
medicamentos, sobre nosso corpo e sobre a história natural da maioria das doenças.
E sobre a doença chamada Covid-19, nunca na história da medicina foram
produzidos tantos conhecimentos em tão pouco espaço de tempo.
Em menos de seis meses de
aparecimento dessa infecção, sabemos que 80% dos
pacientes vão evoluir para a cura, com, sem ou apesar dos médicos. De cada 100
pacientes, 20 deles vão precisar de tratamento hospitalar. Cinco devem
necessitar de tempo prolongado de tratamento intensivo. Sabemos também que a
mortalidade da Covid-19 gira ao redor de 1%. Essa é a história natural dessa
doença pandêmica.
A cloroquina entrou nesta
história pois, em estudos de bancada, chamados
in vitro, foi eficaz para deter a replicação do vírus. Entretanto, diversos
estudos clínicos não foram capazes de mostrar qualquer benefício da medicação,
mesmo quando associada a outros medicamentos. Em outras palavras, a cloroquina
não alterou em nada a história natural da Covid-19.
Entre os estudos bem
desenhados para avaliar a eficácia da cloroquina, destaco um trabalho
brasileiro publicado no prestigiado periódico americano New England Jorunal of Medicine. Assinado pelo médico Alexandre
Cavalcanti e outros 34 pesquisadores, o trabalho analisa os dados de um
consórcio de 55 hospitais brasileiros dentre eles o Albert Einstein, Sírio Libanês
e Beneficência Portuguesa de São Paulo e o Hospital Moinhos de Ventos de Porto
Alegre. Não houve benefício para os pacientes que usaram hidroxicloroquina ou
hidroxicloroquina associada à azitromicina, se comparados com o grupo que
recebeu apenas tratamento de suporte.
A discussão em torno da
prescrição de cloroquina ganhou proporções desnecessárias. Mas nada se iguala à
pletora de postagens, sugerindo os mais diversos tratamentos para a doença,
todos inócuos: óleo de gergelim, chá quente, vitamina C, vitamina D, água
quente com limão, água morna com sal e vinagre, chá de erva-doce, alho cru,
alvejante à base de cloro, chá de boldo, gengibre (natural ou cozido), chá de
jambu, poli vitamínicos e até álcool puro. Este último matou 44 pessoas no Irã.
Em março, durante o carnaval
no Brasil, quando os primeiros casos começaram a aparecer, sugeriu-se, para a prevenção
contra o coronavírus, o famoso cheirinho da Loló, mistura de éter com
clorofórmio. Na mesma linha, tentaram fantasiar a cocaína como remédio de
combate ao corona.
Bizarrices também fizeram
parte do arsenal contra o vírus: no
Vietnã, gatos pretos eram sacrificados para fazer um suco com o sangue; na
Índia, urina de vaca e no Brasil, o pastor Valdemiro Santiago vendia sementes de
feijão branco por até mil Reais, para semear a cura do coronavírus. Agora, a
proposta é injeção de ozônio por via retal durante dez dias.
Tanta parafernália inútil
reflete o desespero em busca de soluções milagrosas e o desapreço pela
medicina. Afinal, convenhamos, ninguém chega a um hospital com um problema de
saúde para dizer aos médicos qual o tratamento que deve ser instituído.
Nesses tempos bicudos, o
discurso recorrente de descaso e desrespeito às Instituições, acaba por incluir
a ciência médica.
A despeito de tudo isso,
médicos e demais profissionais de saúde continuam arriscando suas vidas para
salvar a dos outros.