A incapacidade de pensar não é estupidez.
Ela pode ser encontrada em pessoas inteligentíssimas
Hanna
Arendt (1906-1975)
Thinking and moral
Considerations
Em minha publicação de 2 de
outubro expliquei como usei a neurofilosofia para minha escolha no segundo turno
de nossas eleições. Volto a ela para tentar compreender a reação de familiares queridos,
colegas médicos e de tantas pessoas que pletoram as redes sociais com
publicações antidemocráticas e ocupam as ruas questionando o resultado das
urnas.
Sei de muitas das razões que
os levaram a escolher Bolsonaro. Até concordo com algumas delas. Mas sempre que
eu questionava sobre os riscos dessa escolha para a democracia recebia críticas
ferozes e apaixonadas.
Com a recusa de se admitir a
derrota e as manifestações diante dos quartéis pedindo intervenção militar, não
há mais como esconder o matiz autoritário e retrógrado desse voto.
Como explicar manifestações a
favor de um golpe militar que traria de volta a ditadura? Não conseguem
perceber que livres manifestações amanhã poderão ser amordaçadas?
Como entender o pensamento de um
deputado que recebeu votação expressiva e de outros políticos, quando questionam
o método eletrônico das urnas que os elegeram? Será que fraudaram a própria
eleição?
Como pessoas de bem se igualam
em voz a quem responde com granadas e tiros de fuzil a uma ordem de prisão?
Como parear com um representante do povo que em resposta a um insulto saca uma
arma e sai à caça do desafeto? Como pessoas tão inteligentes podem ser
tolerantes à exemplos de barbárie?
Hanna Arendt, no mesmo ensaio
da epígrafe, atribui a Kant a distinção entre pensamento e conhecimento e nos
advertiu: “precisamos da filosofia, o exercício da razão como faculdade do
pensamento, para evitarmos o mal”.
A neurociência distingue o
pensamento crítico, flexível do pensamento dogmático, cristalizado.
Os questionamentos colocados
acima não resistiriam ao pensamento crítico. Entretanto, quando o pensamento
dogmático prevalece há uma tendência a se buscar e processar informações que
reforcem uma opinião prévia ou a expectativa do sujeito.
Chamo isso de teoria da
gaiola, que explica inclusive muitas de nossas crenças. Há um arranjo de
circuitos em nosso cérebro que processa as informações de modo a ajustá-las a
conceitos familiares e ideias pré-concebidas. Essa forma cristalizada de pensar
abre mão de evidências e aceita até notícias falsas, desde que reforcem o
circuito engaiolado.
O problema com esse tipo de
pensamento é que ele não lida bem com situações incomuns e tem dificuldade de
se adaptar a um mundo de constantes mudanças.
No caso em questão, o
pensamento enjaulado coloca em risco nossa liberdade. Se por um lado as manifestações
pela intervenção militar são exemplos de liberdade de expressão, por outro elas
escancaram um paradoxo: hoje sou livre para pedir o golpe, amanhã perco minha
liberdade.
Uma das formas de se combater
o pensar dogmático é desprezar o primeiro pensamento, que é rapidamente produzido,
pois está contido na gaiola. Pense de novo. Abra a gaiola e deixe o pensamento sobrevoar
sobre outras formas de pensar.
A filosofia é avessa ao pensamento
que não questiona. E como nos lembra
Arendt, o pensamento é como o véu de Penélope: ele desfaz pela manhã o que havia
sido tecido na noite anterior.