Querer o bem com demais força, de incerto
jeito, pode já estar sendo se querendo o mal por principiar.
Guimarães
Rosa
A judicialização da medicina
é, sem dúvida, um dos fatores mais importantes para o encarecimento dos
serviços de saúde no Brasil.
Nossa constituição reza que a
saúde é um direito de todos e um dever do Estado. Mas não impõe limites nem de
gastos, nem de custos. Advogados e juízes, sem entender de medicina, podem decidir
sobre tratamentos caros e, não raro, completamente ineficazes.
Assim, a caneta de um juiz
pode exigir que o Estado ou planos de saúde paguem por tratamentos, mesmo se
eles não forem comprovadamente eficazes. O problema é que se esta caneta não
mata, ela também não salva.
Não entender de medicina é
compreensível. Mas não é difícil compreender o longo caminho que determinada
medicação percorre para sair do ambiente de pesquisa, para tornar-se disponível
para o receituário do médico.
Este caminho é uma pirâmide.
Na base dessa pirâmide, estão os estudos em laboratório, que sugerem que
determinado medicamento possa ter efeito terapêutico. No degrau acima, essa droga é experimentada
em animais. Quando parece ter algum efeito, ela passa a ser candidata a ensaios
clínicos, envolvendo seres humanos.
Esses ensaios têm geralmente
quatro fases. Na fase I, é estudada a segurança de uma droga que promete ser
eficaz. Nessa fase, a eficácia não é estudada. O principal objetivo é
determinar a dose adequada. O que esse
tipo de estudo quer responder é se é ou não seguro utilizar a medicação em
humanos. Geralmente a pesquisa inclui entre 20 e 80 voluntários sadios.
Vencida essa primeira etapa,
passa-se para a fase II. Nessa fase, a eficácia é testada. A medicação é
utilizada em 100 ou 200 pacientes e confirma-se a segurança e efetividade para
tratar alguma doença.
Vencida a etapa II, uma
avalição em larga escala é planejada. São os ensaios clínicos que comparam a
medicação nova com alguma já existente, ou placebo, uma composição que parece
com a medicação, mas não tem nenhum efeito em nosso organismo. Para essa fase,
chamada fase III, o número de pacientes é grande e esses estudos, muito caros,
envolvem geralmente vários centros médicos de pesquisa.
Chegando ao topo da pirâmide
de evidências, vários desses estudos, uma vez publicados, são avaliados quanto
a possíveis falhas no método da pesquisa. Só assim, após esse longo percurso é
que uma droga ou tratamento é largamente recomendado, ou seja, quando há
evidências fortes de seu benefício para tratar doenças.
Um bioquímico da Universidade
de São Carlos, Gilberto Orivaldo Chierice, no intuito de querer fazer o bem,
está favorecendo o mal. Ignorando toda a pirâmide das evidências, ele resolveu
prescrever para pacientes a fosfoetanolamina, um produto que ele testou em
ratos de laboratório e que lhe pareceu eficaz no combate a um tipo de câncer. Se
era bom para ratos com um tipo de câncer, pensou que pudesse ser útil para
qualquer ser humano, com qualquer tipo de câncer.
Sem saber a dosagem correta,
nem sequer se a droga era eficaz e para qual tipo de câncer, a medicação passou
a ser distribuída por sua Universidade.
Por si só, isso já
caracterizaria o exercício ilegal e irresponsável da medicina. Quando o erro
foi percebido, a universidade cancelou o fornecimento da droga.
Pacientes passaram a utilizar
a justiça para conseguir a nova panaceia.
O Tribunal de Justiça de São
Paulo havia proibido o fornecimento da fosfoetanolamina, mas o caso chegou ao
Supremo Tribunal Federal e, para surpresa de toda comunidade científica, o
ministro Edson Fachin, em liminar, liberou o fornecimento da droga.
É de doer: em pleno século
XXI, quando a medicina reclama seu status de ciência por meio da prática
baseada em evidências, um ministro do Supremo decreta a volta à pajelança.
Revisão e formatação:
Rachel Kopit
Ophicina de
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Categories:
Crônica médica