A morte de meu tio, o
professor doutor Pedro Raso, mobilizou em mim uma mistura de tempos: o tempo de
sentir e o tempo de refletir.
Por que afinal demorei mais
tempo do que de costume para aceitar a morte dele? Seria natural que não fosse
assim. Afinal, estava mais que anunciada a morte de um velho homem que
carregava uma mente brilhante em corpo pouco sadio.
Havia muito a celebrar sobre
sua vida profissional. Dr. Pedro Raso era catedrático de anatomia patológica, discípulo
de Luigi Bogliolo. Foi um professor e pesquisador dedicado, querido por seus
alunos. Tal era sua inquietude intelectual que, aos 90 anos, driblando as
mazelas de uma degeneração da retina, se debruçou sobre publicações a respeito
das manifestações patológicas da Covid-19. Falava com entusiasmo sobre os
achados de necropsias realizadas em Milão, que alertavam sobre as alterações
vasculares causadas pela infecção. Um mês antes de morrer, participou de uma live organizada pelo Departamento de
Anatomia Patológica da USP, onde discorreu sobre sua grande paixão: as
manifestações hepáticas da esquistossomose. Também participava ativamente das
reuniões semanais, por zoom, da Academia Mineira de Medicina, instituição que
ele tanto admirava.
Em torno do tio Pedrinho, como
o chamávamos, gravitava uma família amorosa e dedicada. Suas idas e vindas ao
hospital serviram de lição para seus netos médicos, Leo e João Pedro. Eles
cuidaram do avô com misto adequado de carinho e profissionalismo. Receberam
dele uma última lição memorável: como aceitar a morte com serenidade.
Tio Pedrinho fazia hemodiálise
três vezes por semana, tratava um diabetes de difícil controle e convivia com
doença pulmonar crônica. Ao se infectar pela Covid-19, manifestou seu desejo de
não ser intubado, caso fosse necessário. Infelizmente, seria necessário. Ao
invés de ser transferido para o CTI, tio Pedrinho pediu a visita de um padre.
Católico, queria uma última oração. Não seria fácil conseguir um Padre que
fosse ao hospital, justamente na ala isolada para pacientes com Covid. Por fim,
a boa alma de um diácono, Dr. Cid Sérgio Ferreira, fez toda a diferença. Esteve
ao lado do tio Pedrinho e compartilhou com ele seus últimos momentos de fé. Já
prestes a ser sedado, sob uma máscara de oxigênio, tio Pedrinho pediu ao seu
filho Eduardo uma caneta e escreveu: “estou em paz”.
E de fato, esteve em paz nos
dois últimos dias de sua vida. Morreu tranquilo, sem sofrimento aparente,
próximo à data em que completaria 91 anos de vida.
Distanciado um pouco no tempo,
eu diria que foi uma morte bonita. Tio Pedrinho teve sabedoria para preparar
todos nós, que o amávamos tanto, para esta inevitável despedida.
Então, por que minha
dificuldade para aceitar sua morte?
Em seu livro de memórias, O menino que jantava manga, tio Pedrinho
narrou o crescimento da criança esperta, que driblava a fome vespertina no
quintal de sua casa, ao pé da mangueira. Sem ressentimentos e com orgulho,
descreveu sua passagem de uma vida de restrições na infância para uma carreira
de sucesso como professor na Medicina.
Para mim, tio Pedrinho nunca
deixou de ser aquele menino que jantava manga. Seus olhos brilhavam diante das
dificuldades, que eram transformadas em desafios. Era sério e brincalhão e
sempre teve um amor contagiante pela vida.
Guardo com carinho e gratidão
as lições exemplares que me passou como tio querido, professor na faculdade e padrinho
na Academia Mineira de Medicina. Tio Pedrinho cresceu na profissão e na vida chegando
à velhice sem nunca deixar de ser criança.
Entendo agora porque foi tão difícil
para mim dar adeus a esse espírito de menino.